a revolução tem que ser feita pouco pouco parte 3: estratificação e ruptura processo criativo como forma
28 ago - 11 out_ 2012
(uma exposição em quatro etapas)
No seu Guia prático para o desvio, Guy Debord argumentava que uma das mais eficazes estratégias de insubordinação social seria a apropriação, ou desvio, de frases e conceitos alheios, para fins revolucionários. Debord identificava vários tipos de desvios, entre eles o desvio menor, em que as palavras ou frases apropriadas não possuem importância própria, mas a adquirem em virtude do novo contexto onde são utilizados, e principalmente o desvio enganador, em que o conceito apropriado é intrinsecamente significativo, mas toma uma dimensão e um valor diferentes a partir do novo contexto em que conflui. A frase que dá nome à exposição pertence, evidentemente, a essa segunda tipologia: retirada de uma entrevista recente de Paulo Mendes da Rocha, no seu contexto originário referia-se à necessidade de uma revolução nas metodologias da construção civil e, metonimicamente, na cidade e na sociedade como um todo. No novo contexto, a frase mantém seu fascínio, mas adquire outros significados, apontando, em primeiro lugar, para a necessidade constante, para uma galeria de arte, de transformar-se, acompanhando as mudanças incessantes da produção artística e (aqui também poder-se-ia falar em metonímia, ou até em premonição) da sociedade. Evidentemente, quanto maior e mais prestigiosa a história da galeria, mais premente e árdua torna-se essa tarefa…
A revolução, diz o arquiteto, tem que ser feita pouco a pouco. As obras aqui reunidas, num primeiro momento organizadas em conjuntos menores e conceitualmente mais coesos, e finalmente rearranjadas com base em outros critérios na reprise final, sugerem de fato uma revolução prolongada, das que não entram nos livros de história, talvez nem nos livros de história da arte, pela simples razão que não começam e não terminam, apenas acontecem. E de fato, a escolha dos temas das três primeiras etapas da exposição responde exatamente ao desejo de olhar, de pontos de vista distintos mas complementares, um mesmo universo. Não é por acaso, inclusive, que a maioria das obras poderiam encaixar-se perfeitamente em mais de um desses marcos curatoriais: a revolução é magmática, fluida, feita rio que nunca é o mesmo, e que, contudo, não muda nunca. A decisão de dividir a exposição em etapas, por outro lado, responde ao desejo de desvencilhar-se das convenções, como a que dita, para uma galeria, a necessidade de expor apenas “seus” artistas, ou de não repetir a mesma obra em duas exposições seguidas, ou mesmo de não tentar construir uma narrativa que ouse expandir-se para além das poucas semanas de duração de uma mostra convencional. Desvencilhar-se, enfim, dos preconceitos que poderiam impedir a revolução, o primeiro dos quais, naturalmente, é a convenção de que uma revolução tem que ser rápida, surpreendente e violenta, quando na verdade ela precisa acontecer aos poucos, tomar o tempo que for preciso, ocupar e mudar o mundo enquanto ninguém olha.
parte 3.
Estratificação e ruptura: o processo como forma
Em 1985, o artista e compositor americano Christian Marclay publicou um LP insólito, Record Without a Cover, concebido para ser vendido sem capa, dessa forma incorporando aos poucos, como sua parte integrante, os riscos inevitavelmente causados pelo manuseio no transporte até as lojas e, sucessivamente, pelo próprio uso. Em âmbito musical, Record Without a Cover pode ser considerado uma espécie de homenagem às teorias e à prática de John Cage, para quem elementos alheios e incontroláveis, em primeiro lugar o acaso, exerciam um papel fundamental no processo que levava à forma definitiva da obra. Na história recente da arte, por sua vez, o LP sem capa pode ser relacionado com uma rica linhagem de obras, inaugurada provavelmente por 3 Stoppages Étalon (1913), de Marcel Duchamp, em que o resultado formal é delegado, pelo artista, ao próprio acaso, com base em um procedimento abstrato, definido a priori e seguido à risca. Esse modus operandi tem sido adotado, em anos recentes, por vários artistas, em muitos casos visando a produção de obras que, por outro lado, poderiam ser consideradas bastante convencionais no que diz respeito a suporte, formato e técnica utilizada. Ao delegar a responsabilidade pelo resultado formal ao procedimento concebido e adotado, a produção torna-se quase automática, mesmo quando realizada fisicamente pelo artista. Não deixa de ser curioso, nesse sentido, que, ao passo que o ato criativo é transformado num processo mecânico, sobre o qual, portanto, o controle deveria ser absoluto, o imponderável volta a insinuar-se pelas frestas da criação, e é o acaso, em última instância, a definir o aspecto de cada obra.
As colagens da série untitled (Horizons) (2011), de Nico Vascellari, artista que, como Christian Marclay, atua também como músico, evidenciam de maneira bastante clara o papel fundamental do acaso nas obras aqui reunidas: ao recortar, em revistas de moda, todas as imagens em que modelos aparecem sobre fundos monocromáticos, deixando apenas esses fundos, o artista chega a resultados imprevisíveis, de uma beleza surpreendente. Ao mesmo tempo, o processo quase geológico de estratificação e solidificação das revistas aponta para o interesse do artista para a natureza como manancial de energias primigênias, evidente em alguns trabalhos anteriores, realizados em florestas, grutas e outros lugares pouco convencionais. A ideia da sedimentação, em seu sentido mais amplo, é o ponto de partida para outros trabalhos aqui reunidos, como Crayon Preto (2009), um conjunto de desenhos realizado por Carlos Nunes sobre papéis de formatos diferentes (do A4 ao A0) usando, em cada um, um bastão inteiro de crayon. Em outro trabalho dele, Caneta Marcadora Azul 07 (2009), a estratificação se dá pela sobreposição de linhas paralelas, traçadas sem parar até esgotar por completo a tinta, resultando num desenho curiosamente parecido ao obtido por Carla Chaim em seu Projeto para Desenho Sistemático Linear acumulativo (2008-2011), onde, porém, o sistema que organiza a criação é rigidamente matemático: seguindo a numeração do papel milimetrado, a artista vai traçando, a lápis, um número cada vez maior de linhas entre as linhas já impressas, isto é, uma linha é desenhada depois da linha 1, duas depois da linha 2, e assim por diante, até o momento em que não é fisicamente possível traçar uma sem esbarrar na anterior. A existência desse instante em que o sistema chega ao seu limite, e a progressão quebra, ou a tinta esgota, é outra característica que relaciona vários dos trabalhos em exposição: para produzir as impressões da série We Support (2012), por exemplo, Runo Lagomarsino se serviu dos slides com esse dizer (inicialmente todos exatamente iguais) que, ao término de uma exposição de longa duração, apresentavam distintos graus de descoloração. As diferenças entre uma imagem e outra, mais uma vez, são mero fruto do acaso, e ao artista cabe apenas a responsabilidade da suspensão do processo, gesto fundamental, contudo, para que o próprio processo fique evidente. Mas é nas obras da série FedEx (2005-), de Walead Beshty, em que objetos frágeis são enviados por FedEx com o propósito de chegar danificados ao seu destino, que a ideia da ruptura como objetivo último do processo faz-se evidente, ao ponto que o momento (nunca presenciado pelo artista) em que a peça se quebra, é o em que ela deixa de ser um simples objeto para tornar-se uma obra de arte. Como em Record Without a Cover, os acidentes de percurso, teoricamente acessórios e secundários, revelam-se ser, aos poucos, o que nos induz, e nos seduz, a viajar.
Jacopo Crivelli Visconti