antonio manuel_ corte circuito

30 out_2025 - 24 jan_ 2026

antonio manuel_ corte circuito

Corte Circuito

Tiago Mesquita

Antonio Manuel recorre com frequência a uma oposição clássica da visualidade: aquela estabelecida entre ações expressivas e espaços estruturalmente organizados. Isso se manifesta em obras nas quais ele introduz rumores ruidosos nas páginas cuidadosamente diagramadas dos jornais, abre rombos nas paredes e telas, ou emprega símbolos e cores contrastantes, quebrando a homogeneidade do plano. Algo parece pulsar para além da ordenação ortogonal de seus objetos.

Tal contraponto é recorrente na própria constituição da história da arte como disciplina. Ao longo dos anos, muitos autores mobilizaram tais binarismos para explicar fenômenos diferentes, como a tensão no interior de uma poética particular, a diferença estilística entre escolas artísticas – como o Renascimento florentino e o Renascimento veneziano – ou, ainda, para marcar as transformações na linguagem da arte ao longo dos tempos. Assim, pensadores diversos contrapuseram linha e massa, desenho e cor, composição e expressão.

Isso também se verifica nos trabalhos expostos aqui, em Corte circuito. As obras lidam com uma tensão semelhante, embora seja possível dizer que não se trata só de contraposição. Talvez, em Antonio Manuel, o ordenamento e a estrutura sejam interdependentes.

Aqui, o artista apresenta duas séries e uma instalação diferentes. Temos Incontornáveis, conjunto de pinturas feitas sobre folhas de jornal com fendas abertas à mão. Junto a ele, há uma série de relevos feitos com gradeados metálicos que se relacionam com chapas retangulares coloridas. Por fim, mostra uma instalação em que dispõe imagens em um recipiente redondo de fibra de vidro imerso em líquidos voláteis e levemente corrosivos: Até que a imagem desapareça.

Em dois dos trabalhos, o imaginário do noticiário impresso é o tema central. O artista volta a ele, que excita a sua imaginação pelo menos desde 1968. Anteriormente, ele se valeu da estrutura institucional e diagramática do jornal como um veículo para poemas visuais que lidavam com os rumores da notícia. Eram absurdos que invadiam as bancas sob censura, buscando o choque do paradoxo. As intervenções funcionavam como um corte no circuito de normalização repressiva da ditadura. Naquela época, o impresso era o meio de comunicação mais comum e confiável. Incluir notícias delirantes, obtusas e clandestinas entre a torrente de informações, como ele fez durante os anos 1970, era inocular, em um país sob censura, o seu próprio veneno.

Desde que começou a fazer os seus Incontornáveis – desenvolvidos por Antonio Manuel a partir de 2020, durante a pandemia de covid-19 –, a relação com o jornal impresso mudou consideravelmente. Esse meio já não possui a primazia de outrora, embora ainda seja importante. Contudo, nos anos tenebrosos de infecção e governo negacionista, ele teve um papel de mensageiro. Para muitas pessoas temerosas e sem ver luz no fim do túnel, o observar das notícias era o que as colocava em relação com o mundo. Em compasso de espera, víamos o horror se impor e lembrávamos da nossa vida imediatamente anterior, como se tateássemos no escuro. O momento teve algo de poente. As relações sociais modernas se perderam definitivamente naquele momento, não havia no que nos apegar. Antonio Manuel, em um jogo de obliteração e revelação, lida com essa vivência.

O artista atua sobre um caderno feito de duas folhas de jornal. Veda a da frente, pintando-a com uma cor única, lisa e homogênea: amarela, vermelha, preta ou branca. A uniformidade é desfeita pelos buracos contidamente expressivos que rasga no papel com as mãos. Através deles, vislumbramos pedaços de texto, mancha gráfica e fotografia na página posterior. São vestígios de dados e informações, indícios de um mundo que estaria para além da vedação e do ofuscamento da cor pulsante do primeiro plano que se coloca entre nós e os fenômenos ao nosso redor, como um anteparo.

A obra revela uma tensão entre a contemplação do primeiro plano e as informações quebradiças do segundo. A abertura coloca em relação dois aspectos dissociados da nossa experiência: um que acontece diante de nós, e outro que ocorre nos bastidores, mas nos aflige de alguma forma. Essa associação é proporcionada pela fissura que se abre no plano. A ação expressiva não desfaz a estrutura, mas a coloca em relação a outros acontecimentos, em uma crise permanente.

Em relevos como Matema e Dia a dia, por meio de um gesto também moderadamente expressivo, Antonio Manuel rompe parcialmente com o gradeado que organiza a obra. Placas de cor se sobrepõem ou se interpõem nas grelhas. Algumas linhas se rompem. Quebrada, a estrutura sugere outras relações. Temos a impressão de um tensionamento que força as placas para frente e para trás, em um plano tenso que, não obstante, se mantém uno. Assim, a ruptura não leva à dilaceração da superfície, mas reforça o seu caráter problemático, de algo que se coloca diante dos acontecimentos de forma tensa e contraditória.

Nos Incontornáveis, a associação é mais poética, literária. A cor e a contemplação funcionam como moldura para resíduos de experiência espetacularizados como notícia. São lembranças vagas de tragédia, de resistência e de memória que podem se perder se não encontrarmos uma forma de articulá-las, representá-las, organizá-las como pensamento e sensação. Talvez por isso, o plano da obra não se rompe, mas se tensiona, mostrando não uma experiência radical, mas resquícios, que se revelam quando o artista contrapõe cor, palavra e imagem. A experiência é intersticial.

Em Até que a imagem desapareça, mesmo esses indicadores mediatizados da experiência se perdem, tal como as evidências dos acontecimentos no noticiário avassalador on-line. Observamos o futuro como um tempo de corrosão. Resta contarmos uns aos outros o que acontece para evitar sermos soterrados também.