um salto_ dos anos 80 aos dias de hoje
24 mai - 02 ago 2025

Um salto_ dos anos 80 aos dias de hoje
Ana Carolina Ralston
A palavra “salto” retrata de forma contundente o que foi a década de 80 no Brasil. As duas sílabas, que descrevem esse jogo corporal que nos impulsiona para cima e muda a perspectiva à nossa volta, representam uma instigante analogia à efervescência, progresso e liberdade que marcou o período de redemocratização do país. O fim da ditadura militar incentivou artistas a repensarem questões sociopolíticas e identitárias em suas produções com mais ousadia, experimentação e, acima de tudo, otimismo. Mas o salto do qual falamos na exposição que agora ocupa o andar térreo da Galeria Raquel Arnaud não para aí. Ela também trata de um salto temporal que decola nos anos 80 e aterrissa após 2020, em direção à atualidade e à produção de artistas que despontaram 40 anos antes, em meio a tal ebulição criativa, e que seguem atuantes e disruptivas em suas criações.
O arco temporal que se apresenta diante de nós neste salto revela algumas particularidades. Entre elas, uma que se mostra de forma clara e precisa: a coerência na produção de oito artistas mulheres que viveram tal despontar e integram há décadas o time da galeria. A evolução do pensamento crítico, convicções, suportes e materiais usados por esses nomes durante o período reforça o comprometimento com suas respectivas pesquisas. Os temas e anseios seguem sendo elaborados em formatos e mídias distintas, mas sem perder o cerne a que sempre se propuseram. Em comum, todas elas também tiveram uma consistente passagem pela criação em papel. Desenhos, aquarelas e tintas repousaram sobre este que é um dos primeiros suportes a integrar o rol das artes visuais. A relação com o universo ambiental e seu vínculo com a humanidade também transpassam as obras selecionadas, seja pelo material utilizado e/ou pela relação que tais pinturas e esculturas criam com nosso entorno e as discussões que buscam provocar.
A expografia da mostra também contribui para que o tempo passado e presente seja colocado em diálogo. As obras das duas pontas deste arco estão dispostas lado a lado, realçando suas semelhanças e transformações. O gesto pictórico em preto e branco de Célia Euvaldo, tão marcante nos anos 80 e que delimitava o movimento e estabelecia o caminho a seguir, encontra-se com suas pinceladas atuais, cheias de matéria e em confluência com cores diversas. A abstração gestual de Elizabeth Jobim, que propunha no início de sua carreira uma interpretação sensorial e subjetiva dos objetos ao seu redor, comunica-se com a geometria das formas que alcançou na contemporaneidade, em uma potente apropriação dos vazios em diálogo com a arquitetura e o espectador. Os desenhos com pitadas surrealistas que pontuam o começo da trajetória de Ester Grinspum ganham tridimensionalidade em esculturas e pinturas que discutem as relações entre ocupação e espaço, utilizando-se da transitoriedade das linhas. O debate entre fragilidade, instabilidade e permanência da matéria traça o fio condutor entre as produções de Geórgia Kyriakakis, separadas por mais de 40 anos.
Já Frida Baranek, em caminho reverso, expõe seus reconhecidos emaranhados criados a partir de materiais industriais em contraponto a sua mais recente produção em papel artesanal. O movimento do corpo e a constante experimentação das possibilidades do espaço que vemos na produção de Iole de Freitas pode ser apreciada em duas tridimensionalidades criadas em um intervalo de quase cinco décadas, mas que seguem discutindo tais forças gravitacionais do ambiente que nos cerca. Também é a estrutura escultórica o pilar central de Maria-Carmen Perlingeiro, artista que investiga de forma delicada e rigorosa o ambiente mineral e sua intrínseca relação com a luz por meio inicialmente de mármores e, mais recentemente, alabastro e ardósia. Os temas centrais da pesquisa de Shirley Paes Leme, que circundam entorno de materiais naturais, como a madeira, e elementos prosaicos do cotidiano quase imperceptíveis, como o ar e a fumaça, aparecem tanto em videoinstalações, como em esculturas e pinturas mais recentes atreladas à palavra.
Os dois marcos temporais da produção de cada uma das artistas apresentadas reiteram seus respectivos papéis de pesquisadoras do espaço, da matéria e de implicações com o mundo que nos cerca. O tempo revolucionário, de que falava o filósofo e pensador Walter Benjamin (1892-1940), encontra o pensamento das oito artistas que compõem a mostra e que, como ele, desafiam em suas produções a ideia de um tempo linear e contínuo. A ruptura do fluxo temporal por esse intervalo recria a ideia do agora, revelando a possibilidade de reinventar a memória por meio de conexões inéditas com o mundo que se apresenta hoje.