em mãos

08 jun - 10 ago _ 2024

em mãos

entre mãos

ana roman e marina schiesari

 

Este é um texto em três movimentos. Cada um deles nos parece, à primeira vista, autônomo. Quando unidos neste espaço, têm uma coreografia ou uma comunicação polifônica, na qual cada voz se revela única, mas é interdependente. Os movimentos do texto focam as mãos – extremidades dos membros superiores, articuladas pelo punho e estendendo-se até os dedos. No primeiro movimento, as mãos são serenas, em descoberta silenciosa e construção. No segundo, agitam-se intensamente, refletindo conflitos e resoluções. No terceiro, encontram equilíbrio e dançam em harmonia.

 

I – em mãos

O filósofo e ensaísta francês Jules Michelet debruça-se, em seu livro The Bird[1], sobre o comportamento das aves. Em um dado momento do ensaio, ele afirma que os pássaros, por não terem as mãos dos esquilos nem os dentes dos castores, poderiam ser compreendidos como operários desprovidos de instrumentos. Os corpos leves de formato arredondado são, no entanto, sua ferramenta: com o peito, eles apertam e comprimem materiais até torná-los dóceis, até misturá-los, sujeitá-los à obra geral. Nos pássaros, todo o corpo é mão.

O ninho, seu espaço de abrigo e proteção, espelha, em certo sentido, a forma de seu corpo: no arranjo dos galhos que servem de local de repouso veem-se dedos; o corpo do pássaro é, inteiro, instrumento de construção. Com nossas mãos humanas, reproduzimos a forma do ninho: ao recolhermos os dedos, curvamos as palmas das mãos para cima. O gesto é de acolhimento em mãos do mundo material e imaterial e de criação de contenedores, espaços de guarda e proteção[2].

Esta exposição é, em muitos sentidos, o esticar dos braços e o curvar das mãos ao convidarmos as jovens artistas – Ana Takenaka, iah bahia, Nathalie Ventura – a dialogar com aqueles já representados pela Galeria Raquel Arnaud – Carla Chaim, Carlos Nunes e João Trevisan. O entrelaçar das poéticas desses artistas é como a construção de um ninho, na qual se adensam e se arrefecem os galhos, a depender do estágio da construção: na exposição, há momentos em que são costuradas relações próximas; em outros, tem-se apenas indicações de proximidade ou distanciamento.

Os artistas aqui reunidos, assim como pássaros em busca de construir seus ninhos, utilizam a mão, o corpo, a respiração em uma pesquisa em torno do gesto.

 

II – demãos e mãos duplas

A relação entre os movimentos da mão e os processos mentais é complexa. Deixando em segundo plano o debate do campo científico para nos atermos às reflexões da filosofia e da crítica literária, tem-se certa tradição que associa as ações concretas realizadas pela mão, como segurar, tomar e agarrar, aos processos do pensamento, como lembrar, sonhar, perguntar e, no limite, sintetizar. Para Paul Valéry[3], por exemplo, a mão é um órgão extraordinário no qual reside toda a potência de transformação da humanidade: ela é capaz de contrariar o curso das coisas e pode modificá-las. Quando a mão trabalha a matéria, seus movimentos são precisos e investigativos, como os de um detetive em busca de algo perdido. Há uma imagem mental a ser extraída, por meio de movimentos meticulosos que identificam onde tocar, onde a matéria é sensível, frágil e moldável. A forma surge dessas ações, conferindo à matéria uma função ou dimensão estética.

Os artistas reunidos na exposição ensinam diversas maneiras de apreender e construir com as mãos. Em seus gestos, encontramos uma espécie de alquimia: é como se, por meio das mãos, fosse possível desvendar seus segredos e trazer à vida novas formas de ser no mundo. Nos próximos parágrafos, nós nos dedicaremos ao exercício de identificar as camadas (demãos) que compõem a poética de cada um, de modo a apontar semelhanças e diferenças pelas quais se apropriam da matéria e criam seus trabalhos. Intentamos criar, assim, um caminho de mãos duplas.
Ana Takenaka e Carla Chaim desenham. Interessadas no movimento da mão (e do corpo) sobre o papel, seus trabalhos ressoam a afirmação de Degas: “O desenho não é forma, é maneira de ver a forma”[4]. Em gravuras e monotipias, Takenaka ocupa-se da representação das sensações e dos pensamentos por meio do traço, do gesto, explorando as potencialidades da linha e de seus campos abstratos e representativos. Para Chaim, o desenho se expande além das fronteiras do papel. Em seus trabalhos, seu corpo deixa marcas que refletem a tensão entre as regras impostas, como a paleta de cores restrita e os movimentos orgânicos que as desafiam.

Carlos Nunes e iah bahia dobram. Dobrar é um verbo que, em si, guarda uma interessante ambiguidade: significa duplicar ou virar um objeto de modo que uma ou mais partes dele fiquem sobrepostas. Tem-se, na poética de ambos os artistas, o desejo de aumentar ou diminuir de tamanho ao mesmo tempo. Nunes cria regras para explorar relações entre diversos elementos compositivos. Seu trabalho culmina (ou parte de) frequentemente em um esgotamento gradual da matéria. Na exposição, ele apresenta uma série anual de trabalhos com papel de seda que são dobrados pelo artista e tingidos pelo sol. Já nos trabalhos de bahia, estabelecem-se conexões entre pontos e linhas abstratas, criando territórios definidos. Na série Solitons, por exemplo, ela explora a forma de ondas atômicas solitárias. Ao experimentar com formas por meio do tecido, desenvolve uma metodologia topológica, revelando um espaço duplo que desafia noções tradicionais de dentro e fora.

Nathalie Ventura e João Trevisan cavucam. “Cavucar” é uma expressão informal que significa investigar, explorar ou mexer em algo com cuidado ou curiosidade. Ao justapor materiais de origem geológica distinta, Ventura escava a fragilidade dos estilos de vida diante dos desafios ambientais e sociais contemporâneos. Por sua vez, Trevisan explora as relações entre tensão, peso e leveza. Em suas pinturas e seus desenhos, camadas sobrepostas ao longo do tempo revelam profundidade e variação cromática. O artista, assim como Ventura, constrói paisagens em escavações na matéria.

 

III – marcas nas mãos

O tato é uma sensação presente em toda a pele. Como escreve Vergílio Ferreira: “Em qualquer parte do corpo podemos assinalar a presença de um objeto, a presença do real”[5]. Poderíamos perguntar talvez se existiriam diversos tipos de tato: o tato que percebe as coisas do mundo e está distribuído pela pele e aquele que se manifesta principalmente nas mãos, que reflete e prolonga a atividade do eu[6]. Esse último tipo de tato cria também memória e, ao longo do tempo, uma espécie de biblioteca do que foi tocado, compreendido e reconhecido pelo toque. Produzem-se marcas invisíveis nas superfícies das nossas mãos.
No atual espaço expositivo, há repertórios de superfície distintos: do papel japonês ao craft, do carvão ao óleo, da costura do objeto vestido ao encadernado. Os materiais e gestos quentes (como o papel) e frios (como o acrílico) percebidos e explorados pelas mãos dos artistas acessam a biblioteca sensorial do espectador. Cria-se, potencialmente, um encontro entre sensibilidades – do artista e do espectador – e possíveis vínculos entre o eu e o outro: o desejo sentido no corpo de quem vê os trabalhos é de riscar, esticar, dobrar, cavar… As mãos tornam-se pontes entre nós e o mundo.

 

[1] MICHELET, Jules. The Bird. T. Nelson, 1874.

[2] Para um debate acerca da importância das diversas maneiras de armazenar ao longo da história, ver: LE GUIN, Ursula K. A Teoria da Bolsa de Ficção. N-1 Edições, 2021.

[3] VALÉRY, Paul. Eupalinos el Arquitecto y el Alma y la Danza. Antonio Machado Libros, 2019.

[4] Idem, Degas Dança Desenho. Editora Cosac Naify, 2003.

[5] FERREIRA, Vergílio. Invocação ao Meu Corpo. Bertrand, 1978, p. 273.

[6] Ibidem, p. 274.

imagens da exposição